1 de dez. de 2010

 Larissa querida
[Após levar pancadas do próprio Pai, Larissa morre em 24/11/2010] 
         
por Carla Batista
Mestranda do PPGNEIM/ UFBA

Eu hoje chorei muito. Eu sei que ninguém tem nada a ver com isso, mas a minha dor foi muito grande quando li no jornal O Globo que uma garota havia sido morta por pancadas do seu pai, porque ela estava namorando em praça pública.
O que aconteceu com ela me remeteu ao que aconteceu comigo aos 12 anos e comecei a namorar com um primo, 6 anos mais velhos que eu. O namoro começou num dia de festa na cidade. Uma cidade do interior de Goiás. A festa era na rua em frente a minha casa, aonde nos encontramos e acabamos nos sentando no seu carro para poder conversar tranquilamente sobre o que sentíamos em relação um ao outro. Estávamos tão encantados, de mãos dadas, que nem percebemos o final da festa. Quando desci do carro minha família já estava me procurando, algumas pessoas nervosas. A 'fantasia' geral era que eu tinha ido para a lagoa, lugar proibido porque toda moça que ia namorar ali estava completamente perdida para qualquer possibilidade de casamento.
Parece que havia também uma preocupação em relação a este rapaz com quem eu estava. Talvez por pressentimento, porque nesta época meu primo ainda não era o que veio a ser mais tarde: uma pessoa com várias temporadas na cadeia. Era, naquela época, um rapaz filho da 'melhor' classe media da cidade, sempre presenteado com o último carro esporte, estudante do melhor colégio da capital e outras coisas valiosas naquele interior.
Mas o fato é que fui recebida aos gritos e ameaças da chegada do meu pai para me dar um corretivo. Minha memória tem muitas lacunas, mas me lembro que neste dia, sem pressentir o que viria, vesti a minha melhor camisola, que era azul clara, cheia de preguinhas. Possivelmente porque para mim ter começado aquele namoro merecesse algum tipo de comemoração, como vestir a camisola mais linda para dormir! Corte. A lembrança seguinte é de minha mãe, meu irmão mais velho, não sei se outras pessoas estiveram ali sentadas no sofá. Eu, levando uma surra memorável do meu pai. Pontapés, puxões de cabelo, cinturão... tudo o que se possa imaginar de mais bruto. No final de todas as pancadas a minha mais linda camisola azul ficou em frangalhos. Disso e das dores sentidas me lembro bem. E sempre me recordo das pessoas que assistiam a aquele ato de violência. Olhavam atentas, quietas, caladas, aprovando, compartilhando. Eu nunca consegui distinguir o que doía mais em mim em todas estas lembranças.
Eu hoje chorei muito porque esta moça que morreu por estar começando a namorar – que lindo poderia ser na vida de qualquer pessoa! - provavelmente não era uma moça com tanta saúde, resistência e raiva como eu naquele momento. Provavelmente, porque o seu pai foi muitas e muitas mais vezes mais violento que o meu. Não sei o que aconteceu direito porque as notícias complementares ainda virão. Mas me dei, feminista que sou, a pensar em como o desejo e o prazer das mulheres é desde cedo punido, culpabilizado, estraçalhado, transfigurado, eliminado, em último caso. O prazer e tudo o mais que se relaciona a ele. As relações amorosas, os/as filhos desejados ou não, o simples desejo de transar por transar, de mostrar o corpo e se sentir bonita, desejada, etc, etc, etc... Quem sabe apenas a vontade de se sentir segura diante de tantas inseguranças que nos são impostas permanentemente, como formas de dominação e controle. O prazer e o cerceamento dele foram sempre duas experiências vividas de forma concomitantes para a maioria, senão para todas as mulheres.
As instituições todas elas, igreja, família, Estado e para além delas os namoros, as amizades, não estão preparados a permitir e, indo mais além, a estimular todas as nossas possibilidades de vida criativa, construtiva, prazerosa e feliz. Viver com autonomia e ser respeitado/a nas suas escolhas não pode ser incompatível com um projeto de construção democrática no sentido mais amplo: em todos os espaços de convivência nos quais circulamos e atuamos.
No caso de Larissa, considera-se que não houve dolo por parte do pai. Ele não teve o intuito de provocar a sua morte. Eu, diria que ele teve 'apenas'o intuito de matar o seu desejo, sua vontade de viver com prazer e alegria. Como a vida pode ser vivida sem isso? Como se pode querer que alguém viva sem isso?


OS FATOS DESTA TRAGÉDIA


Larissa que queria ser médica morre após apanhar dos pais.
Larissa queria...
Pai é acusado de chutar a cabeça de Larissa Rafaela Kondo de Lima após descobrir que ela estava namorando
Larissa Rafaela Kondo de Lima, 15 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio do Centro Paula Souza sonhava em ser médica. Estava descobrindo a vida, conhecendo pessoas e, como toda garota, buscando o primeiro amor.Essa trajetória foi interrompida na madrugada desta quarta-feira, quando ela morreu, vítima de um edema pulmonar, no Hospital Estadual, em Bauru. A estudante apanhou, na noite de terça-feira (23), do pai, José Carlos  de Lima, 42 anos, e da mãe, de 38 anos. O motivo: ela estava namorando escondida na praça de Cafelândia, onde morava com seus pais.
O pai foi preso em flagrante por lesão corporal dolosa seguida de morte. Ficou por algumas horas na cadeia de Promissão, mas foi solto por volta das 20h.
Segundo informações do delegado de Cafelândia, Adilson Carlos Vincentini Batanero, a mãe denunciou o marido, dizendo que ele havia chutado a cabeça da filha, quando discutia com ela sobre o namoro às escondidas, por volta das 20h de terça. Quando passava da meia noite, Larissa passou mal. Vomitava no banheiro. Pai e mãe a levaram para a Santa Casa de Cafelândia. A vítima já estava desacordada.
 Em seguida, como seu estado de saúde não evoluia, foi transferida para o Hospital Estadual de Bauru, onde morreu.  Uma amiga próxima, de 14 anos, lamentava a morte. “Ela era alegre, feliz. Queria ser médica”, afirma. Queria.