Historiografia



 Mulheres noticiadas: assassinatos, violências ou feminicídios? A violência de gênero no foco da contemporaneidade
Por Clodoaldo Almeida da Paixão e Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti 
 
 
"Não será necessário ser violador ou vítima. Todos seremos chamados para refletir e agir como sociedade quando o tema é violência de gênero" 
(Vanessa Cavalcanti, 2010)



Em tempos onde o público e o privado se mesclam com naturalidade e ganham espaços nas múltiplas expressões da comunicação social, a violência tem sido alvo de informações, debates e análises multifocais, descortinando tempos sombrios, parafraseando a filósofa alemã Hannah Arendt. A banalização da violência e as imediatas referências da “sociedade do espetáculo” (Guy Debord, 1967) transformam a mídia em poderoso veículo de difusão do conhecimento, mas também em cúmplice e agente promotor. Neste sentido, quando as relações são do uso de força, violências generalizadas e grupos específicos, tais como mulheres, jovens, indígenas, crianças, etc, ai sim se ganha maior notoriedade e destaque.
Entre os anos de 1997 e 2007, foram realizadas pesquisas que assinalam para a construção do “Mapa da Violência no Brasil 2010”, realizado pelo Instituto Sangari, com base no banco de dados do Sistema Único de Saúde (DataSUS), e que determina um número alarmante: dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil. Esses dados são reveladores de um fenômeno que merece ser analisado e interrompido. Afinal, tem se dado maior visibilidade à questão das mulheres no Brasil, especialmente sobre a violência enfrentada seja em conflitos armados, social e urbana, doméstica e familiar, sexual, mas também colocada em pauta nas agendas sociais e políticas. E esse fato provocou mais recentemente, a visibilidade do movimento político feminista que redundaram, no âmbito acadêmico e dos movimentos sociais, no aumento considerado de pesquisas discutindo as práticas de violência¹ (quase sempre doméstica) contra a mulher e na aprovação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) como principal instrumento jurídico de intimidação ou de punição dos agressores, dos violadores dos direitos humanos enquanto direitos fundamentais. Da informação à promulgação de lei específica, das bandeiras às ações concretas, de planos nacionais de políticas para mulheres (2004 e 2008) às denúncias e aos processos, abriram-se espaços até então não efetivados. Os silêncios e os arquivamentos deram lugar às vozes através da denúncia, exposição e, sobretudo, criação de um marco legal e de uma agenda competente e amplificada para dar outro rumo ao tema.
Lançado em 2009, o livro “Assassinato de mulheres e direitos humanos”, publicado pela Editora 34, com 248 páginas, de autoria da socióloga Eva Alterman Blay, traz uma excelente contribuição à reflexão acerca da violência contra a mulher no Brasil.
A obra, resultado de pesquisa empírica e de uma vida dedicada à uma abordagem feminista e engajada, está subdividida em seis capítulos: o silêncio dos dados; rádio, televisão, internet e ensino do Direito; os jornais na passagem para o século XXI; a Política e o assassinato de mulheres; réus e vítima na Justiça; a Justiça e o Tribunal do Júri. Entre metodologia, detalhamento do contexto histórico-social, abordagens críticas, enfrentamento do marco legal e midiático às nuances do ambiente jurídico frente à violência de gênero, a proposição dessa obra vai além da pesquisa científica, trazendo divulgação e informações acessíveis também a outros interlocutores.
Já no prefácio da professora da Unb, Lourdes Bandeira, a indicação da primeira contribuição teórica do estudo. Observa-se o reconhecimento da trajetória da autora e de sua inserção nos estudos sobre violência e direitos humanos – percorrendo as três grandes áreas do ensino superior: ensino, pesquisa e extensão. Alerta, desde o início de sua escrita que investigar mulheres, gênero e feminismos vai muito além de simplificar a pesquisa através de um formato mais tradicional e exigindo recortes e delimitações que ultrapassem somente as características sociodemográficas. Em casos assim ficaram de fora os elementos relacionais, situacionais e motivacionais que resultam nos assassinatos das mulheres. A consideração de tais aspectos faz uma grande diferença, revelando questões até então desconhecidas ou encobertas.
A principal questão formulada pela pesquisa – por que os crimes de assassinato contra as mulheres continuam tão fortemente resistentes e disseminados em nossa sociedade? -, desloca o lugar das abordagens sobre a violência contra a mulher. Não é um tema atual, mas sim um processo cultural e histórico de permanências e de longa duração que merecem mais do que noticiários contabilizando os números de vítima.
Não obstante, outras proposições também contribuem à explicitação da profundidade da problemática: a) o que há de comum entre os homens que protagonizam os atos de violência contra as mulheres? b) por que os comportamentos violentos dominantes são majoritariamente atribuídos aos homens? c) quando se afirma que a violência se constitui em meio de controle sobre as mulheres pelos homens, cujo corolário é a manutenção de seu poder, está se falando da natureza ou das conseqüências das relações sociais de gênero? d) de que forma os homens vêm sendo ‘produzidos’ como seres dominantes?  e) por que razão os homens são levados a contribuir, cada um por sua conta e em nome do coletivo masculino, a exercer o controle sobre mulheres?  f) e para tanto, por que fazem uso da violência física e simbólica?
Pela originalidade das questões geradoras levantadas pela autora, a pesquisa oferece apenas uma resposta preliminar e propositiva de continuidades e novos olhares através de estudos que consigam cruzar dados, criar e sustentar-se a partir de eixos multi ou interdisciplinares, bem como serem bases para a formulação e a avaliação de políticas públicas existentes no contexto brasileiro e internacional. Contudo, pautando-se na escritura que lhe é típica, Blay suscita uma problematização essencial para pensarmos tempos históricos passados e presente, mudando ou acrescentando mais um ângulo de análise acerca da violência contra mulheres, as vezes com enfoques – no Brasil e também fora dele – propositadamente, situando-se, nas fronteiras do natural e/ou cultural com igual dimensão. Embora a dominância dos estudos sobre as relações sociais de gênero coloquem a questão no plano da cultura, indicando as mesmas como um construto histórico e sociocultural, negando qualquer perspectiva no âmbito biológico.
Por que esta investigação?, pergunta a autora Eva Blay (2009, p.22), cuja motivação é apontada em seguida: “observa-se na argumentação que se retorna ao velho discurso de que a vítima [a mulher] era culpada de sua própria morte. Será que nada mudou na passagem do século XX para o XXI?”. Isto é, como uma questão de origem mais que secular conseguiu e consegue está sempre contemporânea? Será essa a principal herança sociocultural masculina, herdada pelas gerações masculinas posteriores...? Será essa uma marca (ou know-how) imanente à identidade masculina – ser violento, sobretudo contra a mulher? São assertivas (inclusive de natureza ontológica!) que vêm à mente, depois de folhear e adentrar nos meandros propostos neste livro.
Do ponto de vista metodológico, uma segura inovação na historiografia de gênero, reforçando a idéia de que estudos sobre mulheres, gênero e feminismos podem ser relevantes não só na compreensão, mas sobretudo da intervenção e crítica do processo experimentado socialmente. O uso de instrumentos legais, institucionais e midiáticos proporciona um olhar mais amplo e interdisciplinar, envolvendo Sociologia, Política e Direito, ademais de grande ênfase na Comunicação Social. Onde buscar as informações para as questões da pesquisa? Quem mata mais as mulheres: as doenças (cérebro-vasculares, AIDS, isquêmicas do coração, câncer de mama e colo de útero), os acidentes (acidente de transporte, por ex.) ou os homens? Num contraponto com alguns dados quantitativos disponíveis (ainda sem unificação metodológica e confiabilidade), grosso modo, chama atenção o indicador de mulheres mortas vitimadas diariamente por homens numa década: 5,45 em 1990, 7,32 em 1995 e 8,27 em 1999. Ou seja, o número das vítimas femininas está sempre crescente, apesar dos diversos avanços amplamente percebidos na atualidade e que foram conquistados pela luta e auto-organização das mulheres. Isto pode demonstrar invisibilidade anterior ou manutenção de uma cultura que promove e vê com naturalização/naturalidade a violência de gênero. Os caminhos ainda estão por serem abertos e trabalhados.
Entretanto, há que se ressaltar que a pesquisa inovou (apesar das dificuldades de todas as ordens, em especial em relação ao uso de documentos institucionais, viabilidade e acesso) mais uma vez exatamente em termos metodológicos. Focada nos processos criminais de cinco Tribunais de Júri e nos boletins de ocorrência da Polícia Civil de cinco microrregiões da cidade de São Paulo (Barra Funda, Jabaquara - Saúde, Santo Amaro-Ibirapuera, Penha de França, Pinheiros), percorre as interfaces entre áreas do conhecimento e proporciona um olhar para além do disciplinar, ademais de garantir uma delimitação geográfica importante ao selecionar uma das maiores metrópoles da América Latina e um exemplo da multiculturalidade e diversidade populacional. Vale-se ainda de fontes complementares textuais como os jornais o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo e o Diário Popular, além de rádio, internet e televisão. Na complexidade da comunicação social, Blay traz matizes e representações cotidianas e de grande público para referenciar sua pesquisa e sua argumentação.
O ineditismo das fontes contribuiu para revelar o que a autora denominou de silêncio dos dados. As fontes omitem as informações que revelariam a violência contra a mulher. Em relação às fontes da imprensa salienta que
“É preciso cautela ao se analisar o material da imprensa escrita, já que a seleção dos crimes não reflete a quantidade dos mesmos – nem todos são noticiados -, mas permite observar a linguagem da notícia, o detalhamento dado aos crimes, a perspectiva da mídia e o suposto interesse do público leitor” (2009, p.29).” 
Nos boletins de ocorrências policiais (BO’s) – foram 609 ao todo, sendo 285 mortes e 384 tentativas, revelando a ausência de informação e distorções como, por exemplo, a não distinção entre os sexos das vítimas e dos autores, porque apenas separam os homicídios dolosos (com a intenção de matar), culposos (sem intenção de matar) e as tentativas (quando as vítimas não morreram), sem maiores detalhamentos. Nos processos criminais, houve a dificuldade de encontrá-los nos fóruns, porque arquivados – os réus estavam desaparecidos ou falecidos. Mais também porque alguns processos ainda estavam em andamento, pois uma das partes no conflito (homem) recorreu da sentença ou ainda porque os processos foram transferidos para outra comarca etc.
No capítulo “Rádio, televisão, internet e o ensino do direito” é demonstrado as raízes e a permanência da cultura (imaginário para ela) da violência contra a mulher. As relações sociais de gênero, no contexto da análise, assinalam um fato comum: as mulheres - insatisfeitas nas relações e que procuram emancipação e tentam romper com os antigos amores, acabam, via de regra, sofrendo várias tentativas de assassinatos, quando não são efetivamente assinadas. O absurdo, se assim pudermos chamar, diz respeito à absolvição dos criminosos. A opinião pública é levada ao desfecho antes mesmo das sentenças serem proclamadas. Violadores, assassinos e vítimas são julgados por mestres das letras e do jornalismo. Isto é detectado pela existência de um contínuo de absolvições e invisibilidades históricas no que se refere à temática. A defesa da “honra” (poder sobre a vida e sentimento feminino) mostra o seu poder frente ao direito fundamental à vida. Há, segundo a autora, uma cultura social e jurídica, que não só ensina, mas, sobretudo protege (sempre) os agressores...
Mas qual seria a possibilidade de acabar com esse dilema? Diz a autora que a música:
(...) ‘Cabocla Teresa’ a persistência, na sociedade contemporânea, da legitimidade da dominação masculina nas relações sociais de gênero. Modificá-la, para atingir equidade de direitos entre homens e mulheres, só seria possível se houvesse uma mudança nos valores sociais. (BLAY, 2009, p.36).
O ponto alto da análise é marcado quando se vale da fonte original que estabeleceu os fundamentos jurídicos e a estratégia de defesa dos criminosos (mesmo que confesso) ditos passionais. Trata-se do livro clássico “A defesa tem a palavra”, do jurista Evandro Lins e Silva, publicado em 1991. Nele, ensina como transformar a vítima em culpada da própria morte, porque principal responsável pelo “ato ensandecido” do marido, amante, companheiro etc., mas também do argumento até hoje amplamente utilizado: o assassino mata a vítima mulher por amor, razão pela qual é tomado de plena “insanidade”. Essa a principal defesa juntamente com a demonstração do bom caráter do assassino, seguindo as recomendações do renomado jurista.
Os jornais na passagem para o século XXI, outro capítulo do livro – o terceiro; discute o papel da imprensa frente aos crimes, maneira de exploração e exposição dos fatos e do processo. Novamente, a autora evidencia dois pesos e duas medidas na hora de noticiar os crimes praticados contra a mulher, sempre, colocando-a, como a culpada pela própria morte ou violência sofrida – abuso sexual, por exemplo. Principal observação assinalada é o fato dos crimes serem sempre marcados por forte dose de violência, como a querer deixar uma inscrita, marca pessoal de violência, mensagem no corpo a indicar um “discurso” de gênero que não aceita a liberdade, a emancipação da opressão masculina. Isso porque  
“(...) os chamados ‘crimes em legítima defesa da honra’ respondem pela expressão do ódio à mulher, seja pela perda de poder e de controle sobre o corpo feminino, seja pelo uso que a mulher possa fazer de seu corpo desafiando os papéis, desempenhos e normas sociais que lhe foram prescritos, seja nas relações de conjugalidade, seja na condição de pessoa ou indivíduo.” (2009, pp.10-11)
As manchetes são contumazes. Apenas alguns exemplos: “PM atira na mulher que estava com outro homem”, “assassinou a ex-companheira ao tentar voltar”, “marido abandonado mata mulher, filho e dois parentes”, (p. 53 e 54).
“Como se tem mostrado desde o início deste livro, o assassinato de mulheres ocorre em todas as classes sociais. Filhas de ministros, jornalistas, advogadas, empresárias e outras mulheres de classe alta, infelizmente, também são assassinadas por seus (ex) maridos, (ex) namorados e outros homens com quem tiveram alguma relação afetiva.” (BLAY, 2009, p.68). 
No entanto, o perfil social da vítima determina os níveis de detalhamento do crime nos jornais, seja para expor ou para proteger a identidade familiar da vítima. O elemento novo da análise está relacionado às mortes (infanticídio e homicida) praticadas por mulheres. Outra contribuição ao debate, trazido pela pesquisa, é o perfil de vítimas e agressores. Em 1991, vítimas e agressores tinham entre 22 e 30 anos, a partir de 2000, predominam as faixas etárias dos 31 aos 40 anos. E os agressores costumam matar (declino de falar das armas) além das companheiras, todos aqueles que tentarem impedi-los e a maior parte (44%) dos crimes acontecem na esfera doméstica, seguido da rua e do local de trabalho. A violência, no namoro e nas relações iniciais, abre espaço para debates e para olhares mais atentos, já que revelam que afeto e permanência nem sempre são os fatores comuns dos casos de assassinatos de mulheres no Brasil.
Assusta-nos o diagnóstico da autora quanto à indiferença social para com o número cada vez mais crescente de assassinatos de mulheres. A exceção apenas quando ocorre um caso envolvendo um homem famoso (o goleiro Bruno do Flamengo, por exemplo) e a exploração midiática sensacionalista. Novamente retomamos a “sociedade do espetáculo” e a banalização da violência (Gey Espinheira, 2008) como instrumentos de venalidade e promoção de relações sociais, familiares e afetivas bastante desiguais e assimétricas. A exploração midiática dos acontecimentos aparentemente “isolados” acaba por não contribuir com a percepção da temática (violência contra a mulher) como um problema social, institucional e estrutural. Silencia mais uma vez o processo brutal vivenciado por milhares de mulheres e que, de certa maneira, nem nomeado é, afinal, não se usa o termo assassinato de mulheres nem tão pouco feminicídio quando se trata de uma mulher morta. Não há um processo de amplificação do debate do problema para além da particularização: as vítimas não têm nomes, mas seus agressores, violadores e assassinos sim: são Brunos, Dados, Docas, Joãos, Antônios Discute-se o caso pontualmente até o próximo episódio ou noticiário e não o problema social e potencializador de mais violências. 
Para não deixar em senso comum, ainda vale a observação de que indiferença institucional (talvez mais que isso: uma violência institucional e estrutural) pode ser conjuntamente responsável pela violência vivenciada pelas mulheres, já que  bastante evidente na forma de “registro” e de tratamento dos homicídios de mulheres pelas instituições de proteção (polícia), de julgamento (Justiça) e de divulgação (mídia). No capítulo quarto – “A polícia e o assassinato de mulheres” - , esse aspecto é dissecado em profundidade. Os agressores são os homens – na maioria, e as vítimas são predominantemente brancas (talvez porque pesquisa em São Paulo), alfabetizadas e trabalhavam; as vítimas são na maioria jovens e os ditos companheiros matam mais que os maridos. Há uma proximidade entre os agressores e as mulheres - esposa, companheira ou amante, que são vitimadas (filho, mãe, cunhada, amiga etc.), mortas normalmente por armas de fogo no maior número de casos. Essa a síntese, grosso modo, dos aspectos identificados através dos chamados BO’s. Entre as esferas do público e do privado a linha que separa não é suficiente para parar a violência de gênero. O espaço doméstico e as relações conjugais ou familiares menos ainda.
Em “Réus e vítimas”, capítulo que retrata as análises no contexto dos processos criminais, Blay chama atenção para o fato dos crimes praticados pelas classes médias e altas ficarem mais visibilizados e explorados na mídia, além do longo tempo que são expostos, geralmente envolvendo toda a sociedade numa comoção coletiva e numa dramaticidade real são chocantes e cruéis. Um único caso pode, com a contribuição da mídia, mobilizar todo o país. No entanto, centenas de casos cotidianos são regularmente condenados ao anonimato, à invisibilidade social e midiática.
Os processos criminais trazem algumas informações acerca da situação em que foram encontradas as vítimas. Os corpos mortos, segundo as descrições periciais nos processos criminais, são sempre caracterizados por marcas de profunda violência. Duas partes são geralmente as preferidas da inscrição do alto nível da violência: a da beleza (o rosto) e a da sexualidade (vagina) que são bastante agredidas, deformadas, como que a comunicar algo profundo, seja em forma de vingança ou de realização de prazer obtido na prática da violência. Algo (ir)racional.
Outros dados sistematizados. Sobre os réus: idade, cor de pele – a autora não poderia usar a auto-determinação já que seus recursos são dados institucionais e midiáticos -, grau de instrução, estado civil, profissão, estados de origem, condições de moradia e região, a existência de antecedentes criminais. Em relação às vítimas, os mesmos dados que mostram diferenças na metodologia, na análise e na difusão: o grau de relacionamento existente entre as vítimas e os agressores, se as vítimas tinham ou não filhos, estavam ou não grávidas, mas, sobretudo, a busca pela gênese das agressões para melhor compreensão da problemática.
Teoricamente, a pesquisa opera certa ruptura com outros estudos de gênero que dão foco a uma tipologia da violência contra a mulher. A autora, ao contrário, não cai nessa armadilha analítica. As diversas formas (física, psicológica, simbólica, moral e institucional), amplamente conhecidas pelos estudiosos das relações sociais de gênero, aparecem na pesquisa³, no entanto, totalmente imbricadas, simultâneas, sem uma gradação valorativa. Como que a indicar a quase impossibilidade de segmentar as práticas de violência.
Dentre suas contribuições, a investigação trouxe à tona a necessidade institucional dos órgãos diretamente relacionados ao processo de segurança pública e de justiça, para implantar sistemas mais qualificados de dados, sobretudo naqueles atinentes à violência contra a mulher. Apontou, também, mais uma nova direção para os pesquisadores da temática com tudo que essa oportunidade possa significar no processo contemporâneo de desnudamento das práticas de violação dos direitos humanos, cuja principal dificuldade ainda continua a ser a abertura institucional (polícias, Justiça etc.) para o acesso às fontes em nome do conhecimento científico. Talvez aqui uma dica de agenda político-institucional, mas, sobretudo de grande interesse do movimento social feminino.
Outra ordem de mudança a ser pensada no plano institucional, envolve diretamente a mídia – a exemplo de outro estudo², quanto à publicidade, visibilidade e denúncia de uma prática de violência de gênero que revela o homem (animal político e racional) como um animal predador de si mesmo, mas, sobretudo de crianças e mulheres.
Referências
1. Cf. Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti. Violência doméstica contra a mulher no Brasil – análise da Lei “Maria da Penha”, Nº 11.340/06. Salvador: Editora Juspodium, 2010.
2.Cf. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti. Mídia, políticas públicas e gênero: divulgando o mapa do tráfico de mulheres brasileiras. Revista de História SAECULUM, João Pessoa, jul/dez, 2005.
3. Cf.Eva Alterman Blay. Assassinato de mulheres e direitos humanos. São Paulo: Editora 34, 2009.
4. Cf.Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo (1967). Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1997.
Clodoaldo Almeida da Paixão é Doutorando em Família na Sociedade Contemporânea (UCSAL), Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Juventudes, Identidades, Cultura e Cidadania – NEPJI/UCSAL-CNPq.
Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti é doutora pela Universidade de Leon, Espanha. Professora e investigadora da Universidade Católica do Salvador e integrante do NPEJI/UCSAL-CNPq e do NEHSC – Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – PUC-SP.



 II.

Violência contra as Mulheres, Gênero e Cidadania:

Cecília MacDowell Santos[1]
Wânia Pasinato Izumino[2]


Introdução
O objetivo deste artigo é fazer uma revisão crítica das principais referências teóricas das Ciências Sociais na área de violência contra as mulheres no Brasil. Procuramos, sobretudo, analisar como os conceitos de violência contra as mulheres e violência de gênero são formulados e utilizados nos estudos feministas sobre o tema nos últimos vinte e cinco anos.

A literatura sobre violência contra as mulheres tem suas origens no início dos anos 80, constituindo uma das principais áreas temáticas dos estudos feministas no Brasil. Esses estudos são fruto das mudanças sociais e políticas no país, acompanhando o desenvolvimento do movimento de mulheres e o processo de redemocratização. Nessa época, um dos principais objetivos do movimento é dar visibilidade à violência contra as mulheres e combatê-la mediante intervenções sociais, psicológicas e jurídicas.[3] Uma de suas conquistas mais importantes são as delegacias da mulher, as quais ainda hoje se constituem na principal política pública de combate à violência contra as mulheres e à impunidade.[4]

Os primeiros estudos sobre o tema têm por objeto as denúncias de violência contra as mulheres nos distritos policiais e as práticas feministas não-governamentais de atendimento às mulheres em situação de violência. Em meados dos anos 80, com o surgimento das delegacias da mulher, passam a privilegiar as ações do Estado nas esferas da segurança pública e da Justiça. Empiricamente, pode-se afirmar que a tarefa primordial dessas pesquisas consiste em “[c]onhecer quais eram os crimes mais denunciados, quem eram as mulheres que sofriam a violência e quem eram seus agressores”.[5] Esses estudos compartilham também as referências teóricas adotadas para compreender e definir o fenômeno social da violência contra as mulheres e a posição das mulheres em relação à violência.

Entre os trabalhos que vieram a se constituir como referências a esses estudos, identificamos três correntes teóricas: a primeira, que denominamos de dominação masculina, define violência contra as mulheres como expressão de dominação da mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como “vítima” quanto “cúmplice” da dominação masculina; a segunda corrente, que chamamos de dominação patriarcal, é influenciada pela perspectiva feminista e marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino; a terceira corrente, que nomeamos de relacional, relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina, concebendo violência como uma forma de comunicação e um jogo do qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice”.

A idéia de vitimização é pouco problematizada pelos trabalhos iniciais dos anos 80 que objetivam tornar visível as denúncias de violência através da identificação do perfil das queixas, das vítimas e dos agressores. Já nos anos 90, incentivados pela observação empírica e pelas discussões teóricas que introduzem a categoria gênero nos estudos feministas no Brasil, novos estudos sobre violência contra as mulheres retomam e aprofundam o debate sobre vitimização. A maior parte dos trabalhos têm ainda por objeto as delegacias da mulher. Contudo, não se limitam a mapear denúncias e atores envolvidos em situação de violência. Verificando que as taxas de impunidade não chegam a ser alteradas e a criminalização não é necessariamente almejada pelas vítimas e pelos agentes do Estado, as pesquisas passam a analisar a dinâmica da queixa nos sistemas policial e judicial. O problema da vitimização ganha destaque devido à freqüente retirada da queixa por parte da vítima e ao tipo de intervenção, não necessariamente criminal, que solicita aos agentes do Estado. Diante dessa realidade, o conceito de gênero, entendido como construção social do masculino e do feminino e como categoria de análise das relações entre homens e mulheres, passa a ser utilizado para se compreender as complexidades da queixa. O uso da categoria gênero introduz nos estudos sobre violência contra as mulheres uma nova terminologia para se discutir tal fenômeno social, qual seja, a expressão “violência de gênero”. Mas a noção de patriarcado não é completamente abandonada, o que gera uma imprecisão conceitual. Finalmente, neste período, novos estudos sobre violência contra as mulheres passam a enfatizar o exercício da cidadania das mulheres e as possibilidades de acesso à Justiça. Mas ainda não superam as dificuldades teóricas relativas à conceituação de violência contra as mulheres e violência de gênero, bem como as dificuldades práticas na busca de soluções para esse problema.
Dominação, patriarcado e violência contra as mulheres

A primeira corrente teórica que identificamos como uma das principais referências orientando as análises sobre violência contra as mulheres nos anos 80 corresponde ao famoso artigo de Marilena Chauí, intitulado “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”.[6] Nesse trabalho, Chauí concebe violência contra as mulheres como resultado de uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens como por mulheres. A autora define violência como uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse sentido, o ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade, entendida como “capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir”.[7]

Seguindo essa concepção, violência contra as mulheres resulta, segundo Chauí, de uma ideologia que define a condição “feminina” como inferior à condição “masculina”. As diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem especificamente sobre o corpo da mulher. Explica a autora que, “[a]o considerá-los discursos masculinos, o que queremos simplesmente notar é que se trata de um discurso que não só fala de “fora” sobre as mulheres, mas sobretudo que se trata de uma fala cuja condição de possibilidade é o silêncio das mulheres”.[8] Tais discursos masculinos não se contrapõem a discursos “femininos”, já que são produzidos e proferidos tanto por homens quanto por mulheres. O discurso masculino sobre o corpo feminino define a feminilidade a partir da capacidade da mulher reproduzir. Naturaliza, assim, a condição “feminina” que se expressa na maternidade, base para a diferenciação social entre os papéis femininos e masculinos, papéis esses que se convertem em desigualdades hierárquicas entre homens e mulheres. Como expressa Chauí, “[d]efinida como esposa, mãe e filha (ao contrário dos homens para os quais ser marido, pai e filho é algo que acontece apenas), [as mulheres] são definidas como seres para os outros e não como seres com os outros”.[9] Assim, ao contrário do sujeito masculino, o sujeito feminino é um ser “dependente”, destituído de liberdade para pensar, querer, sentir e agir autonomamente.

Isso não significa que as mulheres não possam cometer violência. A hipótese com a qual trabalha Chauí é a de que “as mulheres, tendo sido convertidas heteronomamente em sujeitos, farão de sua “subjetividade” um instrumento de violência sobre outras mulheres”.[10] Argumenta a autora que as mulheres são “cúmplices” da violência que recebem e que praticam, mas sua cumplicidade não se baseia em uma escolha ou vontade, já que a subjetividade feminina é destituída de autonomia. As mulheres são “cúmplices” da violência e contribuem para a reprodução de sua “dependência” porque são “instrumentos” da dominação masculina.[11]

A perspectiva feminista e marxista do patriarcado, introduzida no Brasil pela socióloga Heleieth Saffioti, é a segunda corrente teórica que orienta os trabalhos sobre violência contra as mulheres.[12] Diferentemente da abordagem da dominação adotada por Chauí, essa perspectiva vincula a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista. Nas palavras de Saffioti, “o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico”.[13] Conforme salienta a autora, o principal beneficiado do patriarcado-capitalismo-racismo é o homem rico, branco e adulto.[14] A ideologia machista, na qual se sustenta esse sistema, socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao “poder do macho”. A violência contra as mulheres resulta da socialização machista. “Dada sua formação de macho, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este “destino” como natural”.[15] Ao contrário de Chauí, Saffioti rejeita a idéia de que as mulheres sejam “cúmplices” da violência. Por outro lado, embora concebendo-as como “vítimas”, a autora as define como “sujeito” dentro de uma relação desigual de poder com os homens. Para Saffioti, as mulheres se submetem à violência não porque “consintam”: elas são forçadas a “ceder” porque não têm poder suficiente para consentir.[16]

As pesquisas sobre violência contra as mulheres na década de 80 utilizam o conceito de violência de Chauí, mas não incorporam sua reflexão sobre a “cumplicidade” das mulheres na produção e reprodução da violência. Na trilha de Saffioti, concebem violência contra as mulheres como expressão do patriarcado e acabam assumindo, com ou sem ressalvas, uma posição vitimista em relação à mulher. Verificamos que, embora esses trabalhos desenvolvam conceitos sobre violência contra as mulheres, pecam por uma imprecisão terminológica, não fazendo nítida distinção entre os termos “violência contra as mulheres”, “violência doméstica” e “violência familiar”, os quais acabam sendo utilizados como sinônimos.

Em trabalho pioneiro sobre denúncias de violência doméstica registradas em distritos policiais na cidade de São Paulo em 1981, Maria Amélia Azevedo parte da concepção de violência de Marilena Chauí para analisar o perfil sócio-econômico das vítimas e dos agressores, bem como o contexto social das ocorrências.[17] Na mesma linha de Chauí, Azevedo concebe violência como expressão de “[r]elações sociais hierárquicas de dominância e subalternidade”.[18] Vale-se, porém, da perspectiva feminista e marxista sobre o patriarcado, defendida no Brasil por Saffioti, para desenvolver seu conceito de violência contra a mulher enquanto “violência física, praticada contra ela por marido ou companheiro e, nessa medida, violência familiar”.[19] Conforme a autora, tal violência decorre de dois conjuntos de fatores. O primeiro refere-se ao que Azevedo denomina de “fatores condicionantes”, os quais são associados às “contradições da sociedade patriarcal capitalista”. Tais fatores compreendem, por exemplo, a estrutura sócio-econômica, a discriminação contra a mulher, a ideologia machista e a educação diferenciada. O segundo diz respeito a “fatores precipitantes” da violência, os quais, segundo a autora, são gerados por situações do cotidiano familiar, como, por exemplo, o uso de álcool e drogas.[20]

Outra pesquisa importante no mesmo período, realizada pela Fundação SEADE, examina denúncias de violência registradas na primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) do Estado de São Paulo durante seus quatro primeiros meses de funcionamento, entre agosto e dezembro de 1985.[21] Essa pesquisa utiliza o conceito de violência contra a mulher de Azevedo, fazendo, porém, uma ressalva com relação à condição de vítima da mulher. Embora considerando a mulher como essencialmente vítima de violência doméstica, as autoras alertam que esta abordagem deve ser vista com cautela, porque alguns dados indicam a mulher como agressora. Entretanto, vale notar que esse trabalho não aprofunda o debate sobre vitimização.

 Relativizando dominação-vitimização

A terceira corrente teórica dos estudos sobre violência contra as mulheres relativiza a perspectiva dominação-vitimização. O principal trabalho que exemplifica essa corrente é de Maria Filomena Gregori, publicado no início dos anos 90 sob o título Cenas e Queixas.[22] Com base em sua experiência como observadora e participante do SOS-Mulher de São Paulo entre fevereiro de 1982 e julho de 1983, a autora analisa as contradições entre as práticas e os discursos feministas na área de violência conjugal e as práticas das mulheres que sofrem violência.[23] Segundo Gregori, o discurso feminista do SOS-Mulher concebe a mulher como vítima da dominação masculina que promove a violência conjugal. A libertação da mulher depende de sua conscientização enquanto sujeito autônomo e independente do homem, o que será alcançado através das práticas de conscientização feminista. Gregori observa que, em oposição a essa perspectiva, as mulheres atendidas pelo SOS-Mulher não buscam necessariamente a separação de seus parceiros. A partir de entrevistas com as mesmas, a autora argumenta que elas não são simplesmente “dominadas” pelos homens ou meras “vítimas” da violência conjugal.

Baseando-se nessa observação, Gregori rejeita a abordagem sobre violência contra as mulheres adotada nas pesquisas que têm por objeto denúncias feitas pelas mulheres em situação de violência. Critica, por exemplo, a abordagem de Maria Amélia Azevedo, considerando-a problemática por pressupor papéis de gênero de maneira dualista e fixa.[24] Na perspectiva de Azevedo, os homens são pré-concebidos como algozes e as mulheres como vítimas. Embora a dualidade vítima-algoz facilite a denúncia da violência, Gregori aponta para os limites da visão jurídica dessa dualidade. “Existe alguma coisa que recorta a questão da violência contra as mulheres que não está sendo considerada quando ela é lida apenas como ação criminosa e que exige punição (a leitura reafirma a dualidade agressor versus vítima)”.[25] Segundo Gregori, é preciso considerar que “os relacionamentos conjugais são de parceria e que a violência pode ser também uma forma de comunicação, ainda que perversa, entre parceiros”.[26]

Gregori rejeita, também, a abordagem de Marilena Chauí sobre violência como expressão de dominação e a dicotomia analítica autonomia-heteronomia. Nesse sentido, Gregori não pensa a violência como relação de poder. A autora entende que a perspectiva da dominação não oferece uma alternativa para a vitimização da mulher. Procura, então, analisar o fenômeno da violência conjugal como uma forma de comunicação em que homens e mulheres conferem significado às suas práticas. A violência conjugal trata-se mais de um jogo relacional do que de uma luta de poder. Ao contrário de Chauí, Gregori considera que a mulher tem autonomia e participa ativamente na relação violenta. A mulher não é, portanto, “vítima” da dominação masculina. No entanto, a exemplo de Chauí, concebe a mulher como “cúmplice” da reprodução dos papéis de gênero que alimentam a violência. Só que tal cumplicidade não é explicada por Gregori como mero instrumento de dominação. Para a autora, a mulher é protagonista nas cenas de violência conjugal e se representa como “vítima” e “não-sujeito” quando denuncia, através de queixas, tais cenas. Nestas queixas, a mulher reforça a reprodução dos papéis de gênero. Ela coopera na sua produção como “não-sujeito” e se coloca em uma posição de vítima, porque assim obtém proteção e prazer. Mas Gregori reconhece que o medo da violência também alimenta a cumplicidade da mulher. Salienta que “é o corpo da mulher que sofre maiores danos, é nela que o medo se instala. E, paradoxalmente, é ela que vai se aprisionando ao criar sua própria vitimização”.[27] Gregori não pretende, assim, “culpar” a mulher de sua participação na produção de sua vitimização. O que lhe interessa é “entender os contextos nos quais a violência ocorre e o significado que assume”.[28]

Ao relativizar o binômio dominação-vitimização, Gregori inaugura um dos debates mais importantes que acompanha os estudos feministas sobre violência contra as mulheres no Brasil desde o início dos anos 90. No primeiro momento, o movimento de mulheres reage contra essa relativização, mas algumas organizações feministas que prestam atendimento a mulheres nas áreas de violência e saúde, como, por exemplo, a Casa Eliane de Grammont e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde em São Paulo, passam a discutir a “cumplicidade” da mulher na relação de violência conjugal e começam a usar a expressão “mulher em situação de violência” ao invés de “mulher vítima de violência”.[29]

Os trabalhos acadêmicos também aprofundam a discussão desse problema, posicionando-se ora a favor ora contra a argumentação de Gregori. Em relatório sobre violência contra as mulheres, preparado para o governo brasileiro levar à IV Conferência Mundial da Mulher organizada pelas Nações Unidas em Beijing em 1995, a antropóloga Miriam Grossi utiliza a perspectiva de Gregori sobre “cumplicidade”.[30] Esse relatório provoca críticas por parte de algumas feministas do movimento de mulheres e da academia.[31]

A nosso ver, Gregori traz uma importante contribuição aos estudos sobre violência contra as mulheres. É necessário relativizar o modelo de dominação masculina e vitimização feminina para que se investigue o contexto no qual ocorre a violência. As pesquisas sobre o tema vêm demonstrando que a mulher não é mera vítima, no sentido de que, ao denunciar a violência conjugal, ela tanto resiste quanto perpetua os papéis sociais que muitas vezes a colocam em posição de vítima. O discurso vitimista não só limita a análise da dinâmica desse tipo de violência como também não oferece uma alternativa para a mulher. Concordamos que a mulher também possa ser cúmplice de sua própria vitimização, mas fazemos algumas ressalvas à análise de Gregori.

A primeira ressalva se refere à sua perspectiva teórica. Na mesma linha de Heleieth Saffioti, entendemos que não se pode compreender o fenômeno da violência como algo que acontece fora de uma relação de poder. Por afastar de sua análise qualquer referência ao poder, Gregori assume uma igualdade social entre os parceiros. [32]

A segunda ressalva diz respeito à forma como Gregori analisa seus dados. Apesar de pretender “entender os contextos nos quais a violência ocorre e o significado que assume”, Gregori não examina de fato esses contextos. Na primeira parte de seu livro, Cenas e Queixas, a autora avalia a prática da organização não-governamental feminista SOS-Mulher. Na segunda parte, vale-se de entrevistas realizadas com as mulheres atendidas pelo SOS-Mulher para analisar as cenas e as queixas de violência conjugal que afeta essas mulheres. Mas essa análise não situa as cenas em seu contexto social mais amplo e não discute as queixas no contexto institucional do atendimento que é prestado pelas feministas. A autora desconsidera a influência que esses dois contextos possam exercer na produção das queixas.

Além disso, Gregori generaliza o significado das queixas. O sentido das queixas varia dependendo do contexto em que são produzidas e da história de vida das mulheres. A queixa pode ser interpretada não apenas como uma “produção da vitimização”. As pesquisas realizadas a partir do registro de violência conjugal nas delegacias da mulher e no Judiciário mostram que a produção da queixa adquire diferentes significados para as queixosas.

O trabalho de Elaine Reis Brandão, por exemplo, vai além da dicotomia vitimização-cumplicidade ao analisar precisamente os contextos das queixas que são registradas numa delegacia da mulher do Rio de Janeiro no ano de 1995.[33] A autora busca compreender o uso reiterado da “suspensão” da queixa tanto a partir do contexto sociocultural em que vivem as queixosas quanto do ponto de vista do atendimento policial. Para as mulheres, a suspensão da queixa é um instrumento de negociação com o parceiro, com vistas à manutenção, transformação ou dissolução da relação conjugal. Na ótica institucional, a suspensão da queixa reforça uma visão policial de que violência contra as mulheres não é crime. Embora a queixa possa concretizar a dualidade vítima-algoz, na análise de Brandão o pedido de suspensão mostra que a mulher confere um significado distinto da vitimização através da manipulação da queixa. Com base em entrevistas e em sua observação da relação vítima-policial, a autora conclui que a instituição policial participa indiretamente da negociação dos acordos conjugais que ocorrem no ambiente familiar.[34]

Outra interpretação sobre o significado das queixas pode ser encontrada no estudo de Wânia Pasinato Izumino a respeito de processos judiciais na cidade de São Paulo em casos de lesão corporal praticada por homens contra mulheres em relações conjugais.[35] Em Justiça e Violência contra a Mulher, a autora realiza uma leitura comparativa das histórias narradas pelas partes e refuta a idéia de vitimização feminina. Contudo, ao contrário de Gregori, não trata da violência como uma mera forma de comunicação. A partir de uma perspectiva de gênero como relação de poder, Izumino propõe uma análise do papel das mulheres na condução das queixas e dos processos penais. Observa que há diferenças significativas entre os depoimentos prestados pelas mulheres nas diferentes fases de muitos processos e analisa a forma como essas diferenças influem nas decisões judiciais.

Entre os casos que resultam em absolvição, a principal característica observada é a mudança do relato apresentado pela mulher no decorrer do processo. Enquanto na fase policial o relato é dramático e indicador do desejo de punição do agressor, na fase judicial a mulher demonstra que já não há mais o desejo de que o agressor seja punido. Nesta nova versão dos fatos, a mulher narra que as agressões foram superadas e que o casal está vivendo em harmonia. Com base nos dados da pesquisa (processos penais), não se deve concluir que a violência conjugal tenha de fato sido interrompida. Mas verifica-se a mudança no interesse da mulher. Embora Izumino mencione que fatores extra-judiciais (por exemplo, atributos socioculturais associados aos papéis masculinos e femininos) possam concorrer para essa mudança, os dados não lhe permitem explicar por que ela ocorre. Na análise da autora, como as mulheres não têm poder para interromper o processo, elas desenvolvem diferentes estratégias perante a Justiça, utilizando-a, nesses casos, como instância mediadora para a renegociação do pacto conjugal. Nos casos que resultam em condenação, os depoimentos mantêm-se os mesmos em todas as fases do processo e, quando há diferenças, as novas informações servem para agravar a agressão. Nesses casos, as mulheres utilizam a Justiça para buscar a criminalização do agressor. A autora observa que, mesmo havendo condenação, os papéis sociais femininos e masculinos são manipulados pelas mulheres e apropriados pelos operadores do direito de forma a preservar a imagem tradicional da instituição familiar e do casamento. Nas duas situações, a análise mostra que as mulheres têm um papel ativo na condução dos processos; ao invés de se colocarem no papel de vítima, as mulheres exercem poder para construir variadas versões dos fatos e para de alguma forma alterar sua situação.

 Gênero, violência e cidadania
No final dos anos 80, ocorre uma mudança teórica significativa nos estudos feministas no Brasil. Sob a influência dos debates norte-americanos e franceses sobre a construção social do sexo e do gênero, as acadêmicas feministas no Brasil começam a substituir a categoria “mulher” pela categoria “gênero”. Apesar das diferentes áreas temáticas e correntes teóricas, há um consenso de que a categoria gênero abre caminho para um novo paradigma no estudo das questões relativas às mulheres. Enquanto o paradigma do patriarcado pressupõe papéis sociais rígidos, condicionados culturalmente pelas diferenças biológicas entre o homem e a mulher, a nova perspectiva de gênero enfatiza a diferença entre o social e o biológico.[36] Gênero é definido como uma relação socialmente construída entre homens e mulheres, servindo como categoria de análise para se investigar a construção social do feminino e do masculino.[37]

A principal referência para os estudos sobre gênero no Brasil advém do trabalho da historiadora e feminista americana Joan Scott, especialmente seu artigo publicado em 1988, intitulado “Gender: A useful category of historical analysis”, onde a autora formula sua definição de gênero.[38] “Minha definição de gênero tem duas partes e vários itens. Eles estão inter-relacionados, mas devem ser analiticamente distintos. O coração da definição reside numa ligação integral entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseado em diferenças percebidas entre os sexos (...) Entretanto, minha teorização de gênero está na segunda parte: gênero como uma forma primária de significação das relações de poder. Talvez fosse melhor dizer que gênero é um campo primário no qual ou através do qual o poder é articulado”.[39]

Influenciados pela nova perspectiva de gênero, os estudos sobre violência contra as mulheres no Brasil passam a usar a expressão “violência de gênero”. As primeiras autoras brasileiras que utilizam esse termo são Heleieth Saffioti e Sueli Souza de Almeida, em livro publicado em 1995, intitulado Violência de Gênero: Poder e Impotência.[40] Em publicação mais recente sobre gênero, patriarcado e violência, Saffioti define “violência de gênero” como uma categoria de violência mais geral, que pode abranger a violência doméstica e a violência intra-familiar.[41] Segundo a autora, a violência de gênero ocorre normalmente no sentido homem contra mulher, mas pode ser perpetrada, também, por um homem contra outro homem ou por uma mulher contra outra mulher. A violência familiar “envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consangüinidade e a afinidade. (...) Compreendida na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso. (...) A violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar. Atinge, porém, também pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregadas(os) e empregadas(os) domésticas(os)”.[42]

Apesar de usar o conceito de gênero e desenvolver uma nova terminologia nas suas discussões sobre violência contra as mulheres, Saffioti não incorpora esse conceito na sua definição de “violência de gênero”. Isto porque a autora não abandona o paradigma do patriarcado e continua definindo violência como expressão da dominação masculina. Nas palavras de Saffioti, “paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero”.[43]

Vários trabalhos sobre violência contra as mulheres passam a utilizar a expressão “violência de gênero” na mesma perspectiva de Saffioti. Para Maria Amélia Teles e Mônica de Melo, por exemplo, “violência de gênero” é “(...) uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas (...) A violência de gênero pode ser entendida como ‘violência contra a mulher’ (...)”.[44]

Em trabalho recente sobre os Juizados Especiais Criminais e a “violência de gênero” na cidade de São Paulo, Izumino tece críticas pertinentes ao modo como a literatura sobre o tema tem usado o termo “violência de gênero”, apontando que o mesmo vem sendo utilizado como sinônimo de violência contra as mulheres, sem haver uma mudança conceitual.[45] Em primeiro lugar, aponta a autora que o paradigma do patriarcado deve ser abandonado, porque é insuficiente para explicar as mudanças dos papéis sociais e do comportamento de muitas mulheres diante da violência. Como mostram as pesquisas sobre delegacias da mulher no Estado de São Paulo, tem crescido o número de denúncias mesmo que o número de delegacias não tenha aumentado. Por um lado, esse aumento sugere que as delegacias se tornaram um lugar de referência para as mulheres em situação de violência, por outro lado, evidencia a capacidade que estas mulheres possuem para reagir à violência sofrida. Em segundo lugar, quando se define violência de gênero como uma relação de dominação patriarcal, o poder das partes segue sendo concebido como algo estático. Adotando o conceito de poder de Foucault e o conceito de gênero de Scott, Izumino argumenta que “pensar as relações de gênero como uma das formas de circulação de poder na sociedade significa alterar os termos em que se baseiam as relações entre homens e mulheres nas sociedades; implica em considerar essas relações como dinâmicas de poder e não mais como resultado da dominação de homens sobre mulheres, estática, polarizada”.[46] Nessa perspectiva, violência de gênero não pode ser definida como uma relação de dominação do homem sobre a mulher. A situação de violência conjugal, por exemplo, encerra uma relação de poder muito mais complexa e dinâmica do que a descrita pelo viés da dominação patriarcal.

Além de se influenciarem pelos debates teóricos internacionais e nacionais sobre o uso e definição da categoria gênero, nos anos 90 os estudos sobre violência contra as mulheres também refletem mudanças no cenário jurídico-político nacional e internacional. O processo de redemocratização no Brasil dá ensejo à promulgação de novas leis (por exemplo, a Constituição de 1988) e novas instituições (como as já citadas delegacias da mulher) que vêm ampliar formalmente os direitos das mulheres. Com a ratificação, pelo Estado brasileiro, de normas internacionais reconhecendo formalmente os direitos das mulheres como direitos humanos – por exemplo, as Convenções da ONU e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também chamada Convenção “Belém do Pará” –, o paradigma internacional dos direitos humanos é também trazido para as práticas e os estudos feministas. Nesse contexto, as pesquisas sobre violência contra as mulheres passam a enfatizar uma preocupação com a ampliação dos direitos humanos das mulheres e o exercício de sua cidadania no âmbito das instituições públicas, principalmente na esfera da Justiça.[47] Se, por um lado, essas pesquisas contribuem para a discussão do problema da violência num contexto mais amplo de acesso aos serviços públicos, entendendo-se tal acesso como um direito de cidadania, por outro lado, geralmente deixam de oferecer uma contribuição ao debate sobre o conceito de violência contra as mulheres, não raro usando a expressão “violência de gênero” como sinônimo daquela.

 Considerações finais

Consideramos que os estudos sobre violência contra as mulheres no Brasil têm feito importantes contribuições empíricas e teóricas para a visibilidade e a compreensão desse fenômeno. Os mapeamentos das queixas, os debates sobre a posição da “vítima” e as investigações sobre os sistemas policial e judiciário têm-nos revelado que a violência contra as mulheres é um sério problema na sociedade brasileira, merecendo a atenção, não apenas das Ciências Sociais, como também dos poderes públicos. Com base em nossa revisão das principais referências teóricas que orientam esses estudos, tecemos breves considerações finais no intuito de colaborar com o desenvolvimento dos debates feministas e o surgimento de novas pesquisas.

Primeiro, entendemos que a noção de dominação patriarcal é insuficiente para dar conta das mudanças que vêm ocorrendo nos diferentes papéis que as mulheres em situação de violência têm assumindo. Defendemos uma abordagem da violência contra as mulheres como uma relação de poder, entendendo-se o poder não de forma absoluta e estática, exercido via de regra pelo homem sobre a mulher, como quer-nos fazer crer a abordagem da dominação patriarcal, senão de forma dinâmica e relacional, exercido tanto por homens como por mulheres, ainda que de forma desigual.

Segundo, torna-se necessário definir “violência de gênero” com maior rigor teórico, incorporando-se todos os aspectos do conceito de gênero de Joan Scott, sobretudo sua referência a gênero como um campo em que o poder é articulado. Além disso, devemos precisar melhor os conceitos com os quais trabalhamos, avançando nas reflexões sobre as diferenças conceituais entre expressões como “violência contra as mulheres”, “violência de gênero”, “violência conjugal”, “violência familiar” e “violência doméstica”.

Terceiro, consideramos importante uma ampliação do objeto das pesquisas para que a perspectiva de gênero não exclua diferentes categorias sociais das análises sobre violência contra as mulheres no Brasil. Por exemplo, precisamos compreender melhor não apenas o papel das mulheres nas relações de violência, como também o papel exercido pelos homens, já que ambos participam na produção dos papéis sociais que legitimam a violência.[48] Nesse sentido, é importante que se estude como a construção social tanto da feminilidade quanto da masculinidade está conectada com o fenômeno da violência. Além disso, seja em situações de violência conjugal ou de outras formas de violência contra as mulheres – tais como, violência policial contra prostitutas, violência contra mulheres negras e violência contra lésbicas –, as práticas de violência e as respostas dadas pelos agentes do Estado e por diferentes grupos sociais podem estar relacionadas não apenas a questões de gênero, como também de classe social, raça/etnia e orientação sexual, entre outras categorias socialmente construídas.[49] A partir de uma perspectiva de gênero que leve em conta múltiplas categorias sociais, devemos, assim, investigar como diferentes construções socioculturais de feminilidade e de masculinidade vinculam-se a formas variadas de violência contra as mulheres.

Por último, no tocante especificamente à violência conjugal, que tem sido o principal objeto das pesquisas sobre violência contra as mulheres no Brasil, concordamos com as críticas até então feitas à perspectiva de vitimização que ainda aparece em alguns trabalhos. Isso não significa que concordemos com a idéia de “cumplicidade” formulada por Gregori. Nesse aspecto, preferimos o sentido de “cumplicidade” proposto por Chauí. Mas, se por um lado concebemos, a exemplo de Chauí, que tanto os homens quanto as mulheres são agentes de reprodução dos papéis sociais, por outro lado, ao contrário desta autora, entendemos que as mulheres têm autonomia e poder para mudar tais papéis e a situação de violência na qual porventura se encontrem, conforme nos vêm demonstrando novos estudos sobre violência e acesso a serviços públicos, especialmente no âmbito da Justiça. Em suma, devemos relativizar a perspectiva teórica da dominação-vitimização. Essa relativização faz-se ainda mais necessária para que possamos compreender como não apenas as mulheres, senão também os homens praticam e conferem significado a violência contra as mulheres em específicos contextos socioculturais.

Reconhecemos, porém, a dificuldade de se levar o debate sobre relativização às práticas feministas dentro e fora do Estado. Tal dificuldade é muito bem explicitada por Barbara Soares em suas reflexões sobre o trabalho que realizou na área de violência à frente da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro, entre 1998 e 2000. Soares argumenta que a idéia de vitimização, elaborada pelas feministas nos anos 70 e 80, tornou-se uma “faca de dois gumes”. Por um lado, contribuiu para dar maior visibilidade ao fenômeno da violência contra as mulheres, por outro lado, colocou a mulher numa “camisa-de-força”, relegando-a a uma posição de passividade em relação ao controle dos homens. Preferindo a expressão “mulheres em situação de violência”, Soares admite que, embora as mulheres não sejam “vítimas”, a vitimização ainda se trata de um instrumento necessário para a sensibilização dos agentes do Estado, os quais tendem a “culpabilizar” as mulheres em situação de violência e não vêem violência contra as mulheres como um crime.[50] Diante desta dificuldade, entendemos ser necessário prosseguir no debate sobre a vitimização, bem como desenvolver mais pesquisas sobre a “culpabilização” das mulheres e a formação profissional dos agentes do Estado que atendem mulheres em situação de violência, tudo com vistas a diferentes alternativas teóricas e práticas.



* Este artigo foi publicado sob o título "Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil," na revista E.I.A.L. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, Vol. 16, n. 1, 2005, p. 147-164.
[1] Professora de sociologia da Universidade de San Francisco, Califórnia.
[2] Doutora em sociologia e coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
[3] Sobre o movimento de mulheres e sua relação com o Estado durante o processo de redemocratização no Brasil, ver o excelente estudo de Alvarez, Sonia E. Engendering Democracy in Brazil: Women’s Movements in Transition Politics. Princeton, Princeton University Press, 1990. Para um breve panorama da história do feminismo no Brasil, ver Alves, Branca Moreira e Pitanguy, Jacqueline. O Que É Feminismo. São Paulo, Brasiliense, 1980; Teles, Maria Amélia de Azevedo. Breve História do Feminismo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1993.
[4] A primeira delegacia da mulher do Brasil (e do mundo) foi criada na cidade de São Paulo, em agosto de 1985, durante o governo estadual de Franco Montoro, para que policiais do sexo feminino investigassem crimes em que a vítima fosse mulher, incluindo, entre outros, os crimes de estupro e lesão corporal. Sobre o contexto em que surgiram as primeiras delegacias e como as mesmas vêm funcionando e se relacionando com o movimento de mulheres, ver Ardaillon, Daniele. Estado e Mulher: Conselhos dos Direitos da Mulher e Delegacias de Defesa da Mulher. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, mimeo, 1989; Nelson, Sara. “Constructing and Negotiating Gender in Women’s Police Stations in Brazil”. Latin American Perspectives, vol. 23, n. 1, 1996, p. 131-148; Santos, Cecília MacDowell. Women’s Police Stations: Gender, Violence, and Justice in São Paulo, Brazil. New York, Palgrave MacMillan/St. Martin’s Press, no prelo (com publicação prevista para 2005); Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Pesquisa Nacional sobre as Condições de Funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres: Relatório Final. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 2001 (www.mj.gov.br/cndm/pesquisa).
[5] Izumino, Wânia Pasinato. “Delegacias de Defesa da Mulher e Juizados Especiais Criminais: Contribuições para a Consolidação de uma Cidadania de Gênero”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 10, n. 40, 2002, p. 283.
[6] Chauí, Marilena. “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”. In: Franchetto, Bruna, Cavalcanti, Maria Laura V. C. e Heilborn, Maria Luiza (org.). Perspectivas Antropológicas da Mulher 4, São Paulo, Zahar Editores, 1985.
[7] Op. cit., p. 36.
[8] Op. cit., p. 43.
[9] Op. cit., p. 47.
[10] Id. ibid.
[11] Op. cit., p. 47-48.
[12] Entre os primeiros trabalhos da autora que ilustram tal abordagem, ver Saffioti, Heleieth I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. Petrópolis, Editora Vozes, 1976. Ver também Saffioti, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo, Moderna, 1987.
[13] Saffioti, Heleieth I. B. O Poder do Macho, op. cit., p. 50.
[14] Ver Saffioti, op. cit., p. 67.
[15] Saffioti, op. cit., p. 79.
[16] Ver Saffioti, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 79-80.
[17] Azevedo, Maria Amélia. Mulheres Espancadas: A Violência Denunciada. São Paulo, Cortez Editora, 1985.
[18] Op. cit., p. 73.
[19] Op. cit., p. 74.
[20] Id. ibid.
[21] Ver Fundação SEADE e Conselho Estadual da Condição Feminina. Um Retrato da Violência contra a Mulher (2038 Boletins de Ocorrência). São Paulo, SEADE/Conselho Estadual da Condição Feminina, 1987.
[22] Gregori, Maria Filomena. Cenas e Queixas: Um Estudo sobre Mulheres, Relações Violentas e a Prática Feminista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
[23] O SOS-Mulher de São Paulo foi fundado em 1980 e teve duração de três anos. Na mesma época, outros SOS-Mulher também foram criados em outras cidades do Brasil, poucos funcionando até o presente, como o de Campinas. Para maiores detalhes sobre os SOS-Mulher no Brasil, ver, além de Gregori, Pontes, Heloísa. Do Palco aos Bastidores: O SOS-Mulher e as Práticas Feministas Contemporâneas. Tese de Mestrado, Departamento de Antropologia, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas, 1986; Grossi, Miriam. Discours sur les Femmes Battues: Représentations de la Violence sur les Femmes au Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado, Universidade de Paris V. Paris, 1998;  Taube, Maria José. “Quebrando Silêncios, Construindo Mudanças: O SOS/Ação Mulher”. In: Corrêa, Mariza (org.). Gênero & Cidadania. São Paulo: PAGU/Núcleo de Estudos de Gênero, UNICAMP, 2002, p 167-201.
[24] Gregori rejeita também outros escritos feministas sobre violência doméstica que generalizam os relacionamentos de violência.
[25] Gregori, op. cit., p. 183.
[26] Op. cit., p. 134.
[27] Op. cit., p. 184.
[28] Id. ibid.
[29] Ver Santos, op. cit.
[30] Para uma versão aproximada desse relatório, ver Grossi, Miriam. “Novas/Velhas Violências contra a Mulher no Brasil”. Estudos Feministas, vol. 2 (Número Especial), 1994, p. 473-483. A autora aborda mais extensamente o debate sobre vitimização versus cumplicidade em Grossi, Miriam Pillar. “Vítimas ou Cúmplices? Dos Diferentes Caminhos da Produção Acadêmica sobre Violência contra a Mulher no Brasil”. Paper apresentado ao XV Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG, 1991.
[31] Ver Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo. Documentos Fórum 2: Seminário Nacional Violência contra a Mulher (Síntese). São Paulo, Governo do Estado de São Paulo, 1994.
[32] Ver Saffioti, Heleieth I. B. “Violência de Gênero no Brasil Atual”, Estudos Feministas, vol. 2 (Número Especial), 1994, p. 443-461; Saffioti, Heleieth I. B. “Contribuições Feministas para o Estudo da Violência de Gênero”, texto não publicado (mimeo), sem data.
[33] Ver Brandão, Elaine Reis. “Violência Conjugal e o Recurso Feminino à Polícia.” In: Bruschini, Crisitna e Hollanda, Heloísa Buarque de. Horizontes Plurais: Novos Estudos de Gênero no Brasil. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, Editora 34, 1998, p. 53-84.
[34] Sobre outros estudos que analisam as queixas na perspectiva de mediação e negociação, ver Muniz, Jacqueline. “Os Direitos dos Outros e os Outros Direitos: Um Estudo sobre a Negociação de Conflitos nas DEAMs/RJ”. In: Soares, Luiz Eduardo. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ISER/Relume Dumará, 1996, p. 125-163; Soares, Luiz Eduardo, Soares, Barbara Musumeci e Carneiro, Leandro Piquet. “Violência contra a Mulher: As DEAMs e os Pactos Domésticos”. In Soares, op. cit., p. 65-105.
[35] Izumino, Wânia Pasinato. Justiça e Violência contra a Mulher: O Papel do Sistema Judiciário na Solução dos Conflitos de Gênero. São Paulo, Annablume/FAPESP, 1998. Devemos lembrar que Izumino segue a mesma linha de investigação de dois importantes trabalhos pioneiros no Brasil, os quais têm por objeto processos penais e a representação dos papéis femininos e masculinos nos discursos dos atores jurídicos: Corrêa, Marisa. Morte em Família: Representação Jurídica de Papéis Sociais. São Paulo, Graal, 1983; e Ardaillon, Daniele e Debert, Guita G. Quando a Vítima É Mulher: Análise de Julgamentos de Crimes de Estupro, Espancamento e Homicídio. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/Ministério da Justiça, 1987.
[36] Ver Paoli, Maria Célia. “As Ciências Sociais, os Movimentos Sociais e a Questão de Gênero”. Novos Estudos CEBRAP, n. 31, outubro de 1991, p. 107-120; Souza-Lobo, Elizabeth. “Os Usos de Gênero”. In: A Classe Operária Tem Dois Sexos: Trabalho, Resistência e Resignação. São Paulo, Brasiliense, 1991; Costa, Albertina de Oliveira e Bruschini, Cristina (org.). Uma Questão de Gênero. São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992; Heilborn, Maria Luiza e Sorj, Bila. “Estudos de Gênero no Brasil”. In: Miceli, Sérgio (org.). O Que Ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995). São Paulo, Editora Sumaré/ANPOCS; Brasília, DF, CAPES, 1999, p. 183-222; Gregori, Maria Filomena. “Estudos de Gênero no Brasil (Comentário Crítico)”. In: Miceli, Sérgio (org.), op. cit., p. 223-235.
[37] Cf. Heilborn, Maria Luiza. “Gênero e Hierarquia: A Costela de Adão Revisitada”. Estudos Feministas, vol. 1, n. 1, 1993, p. 50-82; Saffioti, Heleieth I. B. “Rearticulando Gênero e Classe Social”. In: Costa, Albertina de Oliveira e Bruschini, Cristina (org.). Uma Questão de Gênero. São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 183-215.
[38] Ver Souza-Lobo, op. cit.; Saffioti, op. cit.; Saffioti, Heleieth I. B. “Contribuições para os Estudos da Violência de Gênero”, paper não publicado, 1998 (mimeo).
[39] No original: “My definition of gender has two parts and several subsets. They are interrelated but must be analytically distinct. The core of the definition rests on an integral connection between two propositions: gender is a constitutive element of social relationships based on perceived differences betweeen the sexes (...). The theorizing of gender, however, is developed in my second proposition: gender is a primary way of signifying relationships of power. It might be better to say, gender is a primary field within which or by means of which power is articulated (...)”. (Scott, Joan. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. In: Gender and the Politics of History. New York, Columbia University Press, 1988, p. 42-44). Tradução de Bete Suh.
[40] Ver Saffioti, Heleieth I. B. e Almeida, Suely de Souza. Violência de Gênero: Poder e Impotência. Rio de Janeiro, Revinter, 1995.
[41] Ver Saffioti, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 69.
[42] Saffioti, op. cit., p. 71.
[43] Saffioti, op. cit., p. 75.
[44] Teles, Maria Amélia de Almeida e Melo, Mônica de. O Que É Violência contra a Mulher. São Paulo, Brasiliense, 2002, p. 18. Na mesma perspectiva, ver Silva, Marlise Vinagre. Violência contra a Mulher: quem Mete a Colher? São Paulo, Cortez, 1992; Amaral, Célia C. G. do, Letelier, Ceclinda L., Góis, Ivoneide L. e Aquino, Sílvia de. Dores Invisíveis: Violência em Delegacias da Mulher no Nordeste. Fortaleza, Edições Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (REDOR), Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF), Universidade Federal do Ceará (UFC), 2001.
[45] Ver Izumino, Wânia Pasinato. Justiça para Todos: Os Juizados Especiais Criminais e a Violência de Gênero. Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Vale lembrar que crítica semelhante já tem sido feita à forma como o termo “gênero” veio substituir a expressão “mulher” nos estudos feministas no Brasil. Nesse sentido, ver Costa, Ana Alice e Sardenberg, Cecília Maria B. “Teoria e Práxis Feministas na Academia: Os Núcleos de Estudos sobre a Mulher nas Universidades Brasileiras”. Estudos Feministas, vol. 2 (Número Especial), 1994, p. 387-407; Lima Costa, Cláudia. “Being There and Writing Here: Gender and the Politics of Translation in a Brazilian Landscape”. Paper apresentado no XX Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA), Guadalajara, México, 1997.
[46] Izumino, op. cit., p. 90.
[47] Ver, por exemplo, Muniz, op. cit.; Soares, Soares e Carneiro, op. cit.; Barsted, Leila de Andrade Linhares (coord.). “O Judiciário e a Violência contra a Mulher: A Ordem Legal e a (Des)ordem Familiar.” Cadernos Cepia, Ano 2, No. 2, Setembro 1995; Santos, Maria Cecília Mac Dowell dos. “Cidadania de Gênero Contraditória: Queixas, Crimes e Direitos na Delegacia da Mulher em São Paulo.” In: Amaral Jr., Alberto do e Perrone-Moisés, Cláudia (org.). O Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp, 1999, p. 315-352; D´Oliveira, Ana Flávia Pires Lucas. Violência de Gênero, Necessidades de Saúde e Uso de Serviços em Atenção Primária. Tese de Doutorado. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000; CLADEM. Questão de Vida: Balanço Regional e Desafios sobre o Direito das Mulheres a uma Vida sem Violência. Peru, CLADEM/OXFAM, 2000; Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, op. cit. Pesquisa Nacional sobre as Condições de Funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres: Relatório Final. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 2001 (www.mj.gov.br/cndm/pesquisa); Izumino, op. cit. 1998 e 2003.
[48] O primeiro e único estudo de que temos conhecimento sobre violência de gênero realizado com homens no Brasil é de autoria do Instituto PROMUNDO e do Instituto NOOS, intitulado “Homens, Violência de Gênero e Saúde Sexual Reprodutiva: Um Estudo sobre Homens no Rio de Janeiro/Brasil”, 2003 (www.promundo.org.br/materia/view/118).
[49] Ver, nesse sentido, Santos, op. cit.
[50] Ver Soares, Barbara Musumeci. “A Antropologia no Executivo: Limites e Perspectivas”. In: Corrêa, Mariza (org.). Gênero & Cidadania. São Paulo, PAGU/Núcleo de Estudos de Gênero, UNICAMP, 2002, p. 31-45.